É democracia ou meme? Internet transforma as redes em ruas de protesto
No mundo todo, diferentes grupos disputam a internet para dar mais visibilidade às suas próprias causas. As pautas que antes ficariam longe do debate público estão surgindo entre memes e vídeos, ganhando força no meio digital, pautando a discussão pública e política em vários países — para o bem e para o mal.
Essas mobilizações geram momentos que podem dar força a causas legítimas. Nos Estados Unidos, assim como no Brasil, o racismo não é de hoje e vem sendo uma constante batalha do movimento negro. Em meio aos protestos sobre a morte de George Floyd, um salto de anos em relação aos direitos das minorias negras nos EUA foi dado.
Já se discute, por exemplo, a nomeação de uma mulher negra para a chapa do Partido Democrata com Joe Biden à presidência. Além disso, o co-fundador do Reddit renunciou, e pediu que o conselho da empresa escolhesse uma pessoa negra para seu lugar. E a IBM, uma das gigantes globais de tecnologia, decidiu esta semana se afastar dos negócios de reconhecimento facial. Seu CEO afirmou que a "tecnologia não deve promover a discriminação ou injustiça racial". A decisão foi seguida pela Microsoft, que anunciou que vai pausar a comercialização da tecnologia, até sua regulamentação. Dados do jornal The New York Times mostram que a opinião pública está a favor do movimento negro, e que as adesões se deram a uma velocidade nunca vista antes.
Aqui no Brasil, a discussão #vidasnegrasimportam recebeu apoio internacional, vindo do ator americano Terry Crews:
O movimento Black Lives Matter mostra que causas legítimas podem tomar a internet para criar mudanças nas políticas públicas e na cultura popular. A pauta antirracista abalou as redes sociais e fez veículos de imprensa tradicional revisarem suas bancadas e trazer mais comentaristas negros e negras para a roda de discussão e com resultados muito positivos. O mesmo se pode dizer do movimento feminista, que aos poucos emplaca a igualdade de gênero em empresas e (um pouco mais demorado) na política. E os machistas continuarão derramando suas lágrimas…
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Quando a Amazônia estava em chamas, em 2019, a hashtag #prayforamazonia mobilizou todo o mundo, impulsionada pelos movimentos ambiental e indígena. Alguns políticos brasileiros só acordaram para o que estava acontecendo depois de a hashtag se tornar reconhecida fora do país.
Aliás, o movimento indígena, capitaneado pelas lideranças da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, tem utilizado a internet para mostrar ao mundo a violência contra os povos tradicionais, mobilizando as celebridades e influenciando na política nacional e internacional. Diante do isolamento social, que impossibilitou a realização do Acampamento Terra Livre, por exemplo, lideranças indígenas rapidamente se mobilizaram para fazer o movimento virtualmente, com palestras, protestos, cultura e ativismo, tudo pela internet. Os atos digitais tiveram centenas de milhares de visualizações nas redes.
Por outro lado, onde passa boi, passa boiada. Movimentos que advogam por causas ultrapassadas, baseadas em pseudociência, ou que apenas espalham ódio e violência, por vezes têm se sobressaído na internet. É importante ressaltar que ninguém tem o direito de dizer que uma raça é superior à outra. Teorias supremacistas devem ser apagadas do debate público. No Brasil, racismo é crime, assim como em boa parte dos países civilizados. Mas tais grupos ainda carregam boiadas virtuais, levantando hashtags de apoio a suas lideranças (muitas vezes com a ajuda de robôs), com o objetivo de fazer mais gente se converter às suas seitas e arrancar dinheiro de gente simples.
No caso do Black Lives Matter, foi preciso uma manada de fãs do k-pop para destruir os supremacistas no Twitter, mostrando que quantidade é importante na luta da internet, logo, a adesão é um dos segredos.
Essa visibilidade que ganham certos grupos na internet anda atraindo a atenção de políticos. Antigamente, a TV fazia esse papel, e os candidatos prometiam tudo que nunca fariam, mas no horário eleitoral obrigatório. Agora, como as redes são instantâneas, passam a prometer coisas todos os dias para pequenos grupos em suas lives, mesmo que não cumpram, já que no dia seguinte todo mundo já esqueceu. A crise da Covid-19 acelerou esse processo, pois agora tanto eleitores quanto representantes eleitos estão (ou deveriam estar!) em casa, e com tempo de sobra para gastar na rede.
É recomendável que o candidato mantenha uma lista pública em seu site com todos as promessas de campanha. À medida que for cumprindo, seus eleitores podem submeter novas demandas. Existem políticos brasileiros que fazem isso, submetendo suas atividades ao escrutínio diário dos eleitores por meio de aplicativos, ou até do Twitter.
Mas, uma vez que nossos governos, parlamentos e Justiça não conseguem dar conta de todas as demandas que vêm da sociedade em todas as suas formas (justiça racial, social, ambiental, de gênero, aos atentados contra a honra, o que quer que seja), a reação das pessoas vai ser sempre recorrer à internet para "denunciar" e se fazer ouvir. O "outrage" ou "indignação", somada à cultura do cancelamento que virou prática cotidiana, é nada mais que uma expressão de uma cultura da internet que busca justiça na carência das instituições, que não respondem no volume e ritmo necessários.
Como não há incentivos para a participação na política tradicional, especialmente para as minorias que precisam disputar o poder com verdadeiras oligarquias políticas, as redes se tornaram a primeira alternativa às ruas. E quando uma causa finalmente consegue chamar a atenção das pessoas, os movimentos conseguem usar isso para dar visibilidade a questões que não estão na agenda dos políticos e tomadores de decisão, construindo narrativas potentes para angariar cada vez mais apoio popular.
A imagem da filha de George Floyd segurando um cartaz que dizia "Meu pai mudou o mundo" é um retrato dessa internet que vivemos hoje, e demonstra quanto um vídeo e pequenas ações virtuais que levaram as pessoas a tomar as ruas podem criar momentos que marcam a história e revolucionam a política. A resposta ao título desse texto é provavelmente "os dois". É democracia porque é uma forma de participação popular e promove renovação da política, de um jeito ou de outro. É também meme, porque traz a velocidade da internet e a capacidade de viralização e conexão global que a internet promove. Querendo ou não, as próximas eleições virão pela internet, e não pela TV. Quem vai definir o jogo, de novo, serão as pessoas se manifestando virtualmente.
Assim como as redes poderiam fazer uso de uma melhor atuação do poder público quando alguém comete um crime online e acha que vai ficar impune, não faria mal uma melhor fiscalização das eleições na próxima vez. Para que o potencial da liberdade de manifestação nessa "Democracia remota" seja cumprido, é especialmente importante que as autoridades consigam manter o ambiente justo e livre de maus atores que farão abuso de poder econômico para ganhar no grito (ou na base de bots). #ficaadica
Este texto foi escrito em parceria com Diego Casaes, ativista da democracia e criador do Eleitor 2020, uma plataforma de denúncias de irregularidades eleitorais durante as eleições do ano de 2010. Ele também atua na área do meio ambiente e junto a lideranças ambientais e indígenas no Brasil e países da região amazônica. É especialista em campanhas digitais e foi membro do movimento Transparência Hacker e da comunidade internacional Global Voices.
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