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Yasodara Córdova

Aquele que tem cérebro, ouça: cortes em verba para ciência cobram um preço

Yasodara Córdova

24/03/2020 04h00

A covid-19 estará entre nós pelos próximos meses. Os cuidados com lavar as mãos e isolar-se socialmente são divulgados incansavelmente por aqueles que se preocupam com a população. A precaução ajuda a diminuir o contágio e salva vidas, pois aliviará a sobrecarga do sistema de saúde, só para começo de conversa.  Quem não quer se autoisolar e faz pouco da doença — gente que não acredita na ciência e é ignorante — age como se estivesse na Idade Média. 

Essa pandemia provocou medidas drásticas dos governos no mundo todo, promoveu a queda das bolsas de valores aqui, ali, ao redor do globo e,  além disso, já contabilizou mais de 14 mil mortes. O cenário de quebradeira vai durar ainda mais que o surto da doença, os negócios estão fechando com previsão de recessão. Ou seja: desgraça pouca nunca vem sozinha. 

Veja também:

Cientistas já tinham avisado que estávamos vulneráveis a uma nova gripe ou pandemia. Vários deles escreveram sobre a situação anos atrás. Um exemplo é o cientista/biólogo Átila Lamarino, que tem um canal no YouTube sobre ciência e um perfil no Twitter que é quase um serviço público. Ele citou o próprio coronavírus numa entrevista para um dos episódios Nerdcast, podcast do Jovem Nerd, um canal sobre tecnologia e ciência bem conhecido entre nerds brasileiros (ouça no Twitter aqui, ou aqui). Um detalhe: ele fez isso há anos.

 

Muitos cientistas vêm avisando também sobre o perigo do aquecimento global e são desacreditados por políticos ignorantes. Praticamente estamos pedindo pra rolar outro desastre depois da covid-19. 

Com a onda de extremistas anticiência da direita na política, o financiamento para projetos de pesquisa contra esse tipo de ameaça miou, especialmente em países que tradicionalmente investem nesse tipo de ação. 

Nos EUA, em 2018, o presidente Trump desmontou toda a unidade global de segurança sanitária do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, responsável exatamente por mapear esse tipo de situação. Agora que Inês é morta, os governos tentam lidar com a situação, mas faltam recursos para prognósticos precisos e tratamentos adequados. 

O Brasil é outro exemplo. Nos últimos anos, retirou investimentos da educação, elegeu políticos que preferem pregar o criacionismo (uma mitologia religiosa) a investir em ciência e tecnologia. 

Além disso, o país tem recuado no tema da transparência de dados e zoado completamente a questão da regulação da privacidade e compartilhamento de dados entre empresas e governo. (Ninguém mais sabe quando e como a nossa Lei Geral de Proteção de dados vai começar a funcionar, gerando insegurança jurídica pra geral e vários processinhos™.) 

Pra terminar, o Brasil tem desacreditado a ciência,  seus pesquisadores e a crença de que a ciência é de esquerda, ou de satã, se espalha como a ignorância em tempos de guerra. Infeliz situação, mas há remédio. 

A cura para a ignorância – algo que pode prevenir uma nova pandemia de qualquer coisa – pode passar justamente por conectividade barata; mais colaboração entre pesquisadores e laboratórios; maior quantidade de leis que impeçam os grandes fabricantes de remédio de praticarem estratégias para subir os preços até ninguém mais poder comprar nada; políticas públicas decentes de suporte à ciência e apoio efetivo do setor privado, que poderia investir em pesquisas para o bem comum, de modo compulsório. 

Outros itens que ajudariam seriam a quebra de patentes de medicamentos e equipamentos hospitalares; hardware livre; mais dados abertos e transparência. Por fim, uma guinada no jeito de gerir a ciência — essa pode ser a melhor de nossas apostas — livrando os estudos científicos gananciosos de empresários ligados a políticos e livrando os laboratórios da ameaça populista de políticos doidos. 

Para ajudar a compreender o tamanho das vantagens que uma guinada na direção da ciência poderia trazer — de uma ciência voltada apenas ao lucro extremo para uma ciência preocupada com o bem estar social — eu entrevistei o Rafael Polidoro,  pesquisador de pós-doutorado na escola de medicina da Universidade de Indiana, nos EUA, criador de duas patentes internacionais para vacinas contra os parasitas da doença de Chagas e a toxoplasmose. Ele pesquisa sobre malária desde 2015.

A ciência conhece o vírus que causa a covid-19 já tem tempo. Mais colaboração entre laboratórios e mais investimentos globais em doenças de países em desenvolvimento teria modificado o cenário em que estamos vivendo agora?

Rafael Polidoro: É difícil saber com certeza se mais dinheiro ia resultar especificamente em melhores resultados em relação ao novo coronavírus. Há vários trabalhos nas últimas duas décadas que indicam que havia chance de transmissão morcego-humanos, havia mutações e casos isolados. Entretanto a ciência tem um ímã para surfar na moda que suga os recursos para assuntos que são considerados relevantes, de acordo com a vontade de editores de grandes revistas científicas. Se este não for um deles, mesmo com recurso, vai precisar de sorte, como o CRISPR, para conseguir escapar do submundo das revistas de menor impacto que muitas vezes resultam no fim prematuro de carreiras de pessoas geniais. 

Mas isso quer dizer que os laboratórios teriam que ser menos guiados pelo lucro e mais guiados por ética e um apreço pelo bem comum?

RP: Acho que algumas pesquisas precisam ser imunes à escassez de financiamentos e bolsas. Dessa forma, não há pressão para publicar coisas de alto impacto, forçando laboratórios de coronavírus a mudarem para vacinas de mRNA contra o câncer e congelar todos os seus projetos anteriores, já que este consegue verba e publicações de maior impacto, enquanto os outros, não.

***
O fato de os empresários brasileiros não serem chegados numa filantropia pelo bem da ciência também não ajuda. Há pouquíssimo investimento privado em fundações sem fins lucrativos. Nossa classe empresarial é chegada a investir em apartamento pra deixar fechado e viver de renda, mas poderia fazer muito melhor. Um dos exemplos positivos é o
Instituto Serrapilheira,  fundado pelo casal de empresários  João e Branca Moreira Salles, que tem a intenção de financiar e apoiar a pesquisa no Brasil. 

O problema da saúde, e das mudanças climáticas, tende a piorar também. Com desastres batendo à porta de cidades costeiras, trazendo a intensificação de inundações, queimadas, secas e toda a sorte de maluquices naturais, vamos precisar de remédios genéricos e equipamentos hospitalares baratos. Sobre o assunto, é legal olhar para o movimento de Open Hardware, que defende a abertura de todas as patentes para que todos possam construir equipamentos importantes para a vida em sociedade. Dentro desse movimento existe uma figura quase heróica, o médico palestino-canadense Tarek Loubani.

Loubani descobriu que a galera em Gaza (em guerra) tinha que pagar cerca de US$ 200 por estetoscópios que custavam US$ 30 para produzir em impressoras 3D. Além disso, Israel impõe um bloqueio que dificulta a entrada dos estetoscópios importados, e vidas se perdiam porque os médicos não tinham um equipamento tão básico à disposição. Ele fundou o Projeto Glia para trabalhar ao mesmo tempo no problema do estetoscópio e do bloqueio: da mesma maneira que os fabricantes de medicamentos copiam medicamentos de marca e os vendem por menos como genéricos, o Projeto Glia produz genéricos de equipamentos médicos. Loubani distribui os meios para produzir esse hardware — impressoras 3D — e treina estudantes de medicina canadenses e habitantes de Gaza para imprimir eles mesmos equipamentos médicos. 

Aqui há uma entrevista com ele que vale a pena colocar no tradutor. A moral da história é que negócios não podem se sobrepor à saúde, especialmente em situações de emergência. Vidas são mais importantes que dinheiro, e a indústria farmacêutica e de fabricação de equipamentos médicos deveria ser proibida de ter patentes válidas em países que não têm condições justas para adquirir tecnologia. Imagina que um estetoscópio de 200 dólares hoje em dia custaria quase R$ 1.200 no Brasil. Bem impossível. Ainda bem que não estamos em guerra, ou… precisando de equipamentos hospitalares agora. (Quer dizer…) 

Uma iniciativa open hardware para combater os efeitos do Covid-19 é a "Coronavirus Makers", que chama hackers ao redor do globo a imprimirem em 3D peças de equipamentos hospitalares e enviarem a locais do mundo que estão precisados. A chamada está aqui:

Outra iniciativa, vem da Universidade Federal do Rio de Janeiro, está tentando juntar um dinheiro via uma vaquinha para construir mini-fábricas baratas de respiradores, já que o governo secou verba de universidade pública por motivos ideológicos. O link para contribuir está abaixo:

A pandemia de covid-19 mostra o quanto são importantes a ciência aberta, internet acessível, hardware aberto, medicamentos genéricos e colaboração. Yuval Harari escreveu um artigo para o Financial Times recentemente, explicando a importância de uma mudança no modo como estamos conduzindo a humanidade. No texto ele argumenta que precisamos trocar a vigilância de dados pela transparência de governos, e a ignorância por investimentos em pesquisa e educação massiva. Ele está certo: as mudanças estão aí e são urgentes, resta agora que todos saibamos entender o recado.

 

Sobre a autora

Yasodara Córdova é desenhista industrial formada pela UnB (Universidade de Brasília). Está hoje em Harvard, na Digital Kennedy School, onde pesquisa governo, internet, inovacão e sociedade. Yaso é uma das mais antigas fundadoras de um hackerspace no Brasil (Calango Hackerspace) e desenvolvedora de software autodidata. Ela também já foi web especialist do W3C e consultora técnica da ONU (Organização das Nações Unidas), entre outras atividades.

Sobre o blog

Este blog é sobre internet, políticas públicas e governo.