'Plandemic': a era dos insanos, as mentiras deslavadas e a fé no hoax
A mentira da vez na internet está sendo espalhada em um vídeo, com pouco mais de 26 minutos, que diz revelar uma tal "realidade paralela". A peça, retirada de um pseudo-documentário chamado 'Plandemic' (Plandemia), como tantos outros feitos para enganar, é estrelada por uma charlatã dizendo que vacina diminui a imunidade, entre outras sandices — o suficiente para causar alvoroço entre membros do movimento antivacina e outras seitas. O pior é que o trabalho acusa pessoas, espalha informação sem checagem e não ouve ninguém para opinar ou equilibrar os pratos.
Pensei muito antes de escrever este texto porque, em tese, não se deve evidenciar histórias limítrofes da internet. Limítrofes porque se aproxima do delírio, do bizarro. Estou falando do mar de hoaxes (informações enganosas) reciclados, alguns inofensivos — outros nem tanto, que andam empurrando o debate públicocloro para o abismo da loucura e do radicalismo insano.
Primeiro, quero explicar o que é um hoax. A palavra, anterior ao conceito de "fake news", define muito bem as teorias da conspiração que jamais serão verificadas. Um hoax é uma mentira baseada em pseudociência, ou números e índices inventados, espalhados por alguém com credibilidade suficiente para passar no crivo de algum grupo. Até aí, tudo bem. O problema é que a internet multiplicou tanto a quantidade de pessoas com "credibilidade" quanto há grupos querendo algo (e alguém) em quem acreditar. Como os hoaxes têm uma tendência de virar arma política, ficou fácil transformar a tática em uma das estratégias prediletas pra espalhar fake news.
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Em 1617, um chinês chamado Zhang Yingyu publicou um "livro de trapaças", onde catalogou todas as picaretagens que conhecia. Os hoaxes da época estavam no mesmo saco das crendices, feitiçarias e segredos mágicos, espalhados onde a ciência era baseada em misticismos — tipo astrologia e afins — para obter vantagens econômicas. As milícias da época se valiam de hoaxes pra ganhar dinheiro chantageando gente, para derrubar inimigos e cometer crimes simples, explorando quem não tinha noção das coisas por falta de estudo.
Um hoax bem feito não abre espaço para sua verificação. Um exemplo de hoax já muito explorado por vários grupos no Brasil é o das urnas eletrônicas fraudadas. Esse hoax volta sempre que alguém quer radicalizar um discurso, e é baseado num eterno vai e vem de especialistas que garantem ora que as urnas podem ser fraudadas, ora que são super seguras. O importante aqui é: ninguém nunca vai saber. Como a tecnologia da transmissão de votos é intangível, compara-se com a magia: ninguém nunca vai ser capaz de provar para todos os grupos que não tem fraude. Simples assim. Aqui, a luta se define por quem tem mais autoridade: o Tribunal Superior Eleitoral ou quem espalha o hoax. Até hoje o TSE tem ganhado, mas nunca se sabe.
Outro aspecto importante dos hoaxes é que eles facilmente se tornam cultos, uma vez que a história nunca pode ser desmistificada, carregando seguidores fiéis que acabam encontrando uma "causa" para sua vida e passam a acreditar fielmente naquilo.
Alguns hoaxes já nascem declarados, em uma jogada para reduzir um argumento ao absurdo, para contrapor situações claramente sem sentido. Um exemplo disso é a Igreja Pastafariana, que hoje em dia, 15 anos após sua fundação, tornou-se uma ferramenta contra a doutrinação de crianças por religiosos conservadores que querem ensinar Criacionismo nas escolas públicas. Os pastafarianos são uma religião oficial nos Estados Unidos, e tem até uma bíblia seguida pelos fiéis com mandamentos de seu deus, o grande Monstro do Espaguete Voador.
Outros hoaxes têm seguidores relativamente inofensivos, como uma turma de Mato Grosso do Sul que se autodenomina "Os Zigurats". Esse pessoal se mudou para um pedacinho de terra e construiu um monte de pousadas com formas futuristas, no estilo de Alto Paraíso, em Goiás, e dizem vibrar em outra frequência, algo que ainda não seria explicado pela ciência moderna. Lá eles têm até um centro de (pseudo) ciência onde fazem observações do céu e analisam as tais energias vibratórias, além de comemorarem aparições como a do ET Bilu, por exemplo. Claro, também recebem turistas. Assim como na internet, as histórias bizarras e narrativas "anti-establishment", apresentando fatos alternativos, dão dinheiro pra quem inventa as baboseiras.
Noutro dia recebi de minha mãe uma pergunta sobre outro hoax, mal montado mas cheio de elementos atrativos para quem se impressiona: a história de que haveria uma rede de exploração sexual de crianças nos túneis de Nova York. Mentira deslavada. Vários vídeos no YouTube, com muitas visualizações, aparecem nos resultados de busca pelas palavras "túneis de Nova York". Enquanto o YouTube paga esses produtores de hoax em dólar, o E-farsas faz o trabalho heroico de dizer "mano, não" — só que didaticamente.
Fiquei pesquisando este buraco de coelho até cair numa baboseira sem fim sobre alienígenas disfarçados de pessoas, os illuminati, que estariam por trás da fabricação de uma droga para milionários, orquestrados por ninguém menos que Hillary Clinton. Um dos grandes expoentes dessa teoria doideira é uma galera que se diz contra "tudo isso que está aí", a mídia tradicional, Hollywood e até contra a igreja. Para se ter uma ideia, eles incentivam as pessoas a acreditar em mensagens passadas em FILMES. Isso mesmo: o grupo rejeita a indústria cinematográfica, mas recomenda que se acredite em "sinais" enviados em filmes. O cartaz abaixo foi retirado de uma das sequências de tuítes desses expoentes. A contradição não impede as pessoas de acreditar.
Fiz uma busca no Twitter pelas palavras "Túneis de New York" e o que mais tem é gente perguntando se é real.
Mais uma vez, a vantagem econômica para quem espalha esse tipo de mentira é visível. Os líderes das seitas que alimentam a imaginação das pessoas com esse tipo de hoax enriquecem com o dinheiro de seus seguidores, de maneira a conseguir casa confortável, carros e até um dinheirinho pra pagar os impostos. Muitos acabam indo para os Estados Unidos, onde podem lavar o dinheiro e viver às custas de seus seguidores.
Essas teorias têm sido úteis para angariar muita grana. Tal qual a China antiga, o pessoal que usa hoax para obter vantagem financeira está nadando no sucesso, pois é difícil provar que algo do que diz não é verdade. Primeiro, eles criam um grupo fiel; depois, pedem dinheiro. As vaquinhas online estão cheias de grupos disso e daquilo pedindo dinheiro para pessoas simples, que muitas vezes caem no conto dos vigaristas e sustentam esses malandros por anos.
Como provar que a baboseira dos illuminati é um velho caô engana-trouxa? Pra quem despreza a ciência, qualquer água é cloroquina. Essas seitas são perigosas porque, além de não ter base nenhuma na realidade, não se apoiar em nenhum tipo de fato científico, buscam convencer o leitor a romper com a razão que nos mantém dentro de um contrato social.
É aí que o processo de radicalização acontece. É como se a mente ficasse impermeável à contradição. A pessoa passa a acreditar cegamente numa coisa, e tem essa mania de perseguição de que tudo e todos estão errados, e que o mundo luta contra uma suposta "verdade escondida".
O interessante é que existe toda uma preparação para cada hoax espalhado. As mentiras precisam encontrar terreno fértil, geralmente semeando medo como incentivo para certos comportamentos. O psicólogo, pesquisador e professor da Central Florida University Peter Hancock, autor do livro "Hoax Springs Eternal: The Psychology of Cognitive Deception", ou "Eterna primavera de hoaxes: a psicologia do engano cognitivo", identificou seis etapas para espalhar uma farsa bem-sucedida:
- Identifique um eleitorado, uma pessoa ou grupo de pessoas que, por razões como piedade, patriotismo ou ganância, realmente se importará com aquilo
- Identifique um sentimento específico que fará com que sua fraude apele ao seu eleitorado
- Crie uma brincadeira atraente, com ambiguidades
- Tenha sua criação descoberta por jornalistas da mídia tradicional
- Encontre pelo menos um 'campeão' que apoie ativamente sua farsa
- Faça as pessoas se importarem, positiva ou negativamente — as ambiguidades incentivam o interesse e o debate
Encontrar alguém que se interesse pelo debate é uma fase de extrema importância na era da internet. O velho lema "falem bem ou falem mal, mas falem de mim" nunca fez tanto sentido, uma vez que a treta, tão amada pela internet do Brasil, é a alma do negócio dos algoritmos das redes sociais. Quanto mais um assunto é comentado, mais a postagem adquire relevância, seja ela sobre gatinhos ou sobre a dark web.
Atrair gente indignada, assustada ou impressionada é uma meta sensível, eis aí um dos motivos que justifica o uso de fotografias e vídeos de gente morta de maneira violenta. Se você já recebeu algo parecido com um "VEJA AQUI O QUE FIZERAM COM ELA", acompanhado de uma fotografia de gente ensanguentada, pode desconfiar que você está sendo vítima de algum espalhador de mentiras esperto, que quer te sensibilizar a compartilhar, gerar indignação para capitalizar sobre isso. É como um vício — e se você não se cuidar, vai acabar perdendo a sanidade.
Os efeitos devastadores da formação de cultos limítrofes baseados em hoaxes pode ser devastador. Justin E. H. Smith, professor de história e filosofia da ciência na Universidade de Paris 7 (Denis Diderot), explica em seu mais novo livro o que custou para que a humanidade chegasse a um consenso sobre a razão. Em "Irracionalidade: uma história do lado sombrio da razão", ele faz um apanhado histórico que nos conta o processo de mais de mil anos que a humanidade trilhou até aqui para que a gente estabeleça, em consenso, coisas como "bruxas não voam de vassoura", ou "o que esquenta a água é a agitação dos átomos" — ou até que a área do quadrado é a multiplicação de seus lados.
A consequência da falta de um consenso sobre o que é razoável para a humanidade pode nos levar à extinção, e a Covid-19 já nos deu uma palhinha, matando mais onde os líderes negaram os conselhos da ciência. Teorias obscuras, culto às Cruzadas, medievalismo, culto a ETs, radicais que acreditam na supremacia dos brancos, tudo isso é baboseira e rouba o pouco tempo que temos de discutir coisas mais sérias, como emprego universal, saúde e educação de qualidade para todos e um mundo mais sustentável. Porém, como eu disse, os líderes desses cultos precisam do seu dinheiro e da sua atenção.
É urgente que a internet restabeleça esse consenso. Não falo aqui de acreditar em tudo que a mídia tradicional fala, mas falo de uma base mínima de verdades, para início de conversa. Se a fragmentação da internet e os algoritmos das redes sociais continuarem a favorecer o aparecimento de seitas ridículas, baseadas em filmes de Sessão da Tarde ou quadrinhos da Marvel, daqui a pouco vamos eleger o Leônidas de Esparta — e, se for para eleger mentiroso, prefiro votar em Chicó e João Grilo.
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