Limpeza a R$ 20? A economia compartilhada virou economia da exploração
O uso generalizado do serviço doméstico informal é uma questão cultural no Brasil. Resquício do período da escravidão, a prática de desvalorizar o trabalho de limpeza e manutenção domésticas — principalmente aqueles feitos historicamente por escravizados — é especialmente difundida no país, e recebe um reforço na atual reorganização do trabalho, sendo carregado pela digitalização de tudo.
Em poucas palavras, a economia do compartilhamento, ou uberização, no Brasil, nada de braçada onde o pessoal já é explorado, digitalizando a precarização do trabalho doméstico e explorando a desorganização do setor.
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Uma experiência que eu gosto de relatar é uma pesquisa que fiz em 2018, entrevistando grupos de WhatsApp de profissionais de beleza em Brasília. Eu pesquisava eleições, mas o que encontrei foram grupos muito coesos, lembrando cooperativas, cujas participantes se conhecem de perto e se ajudam, tanto na prospecção de novos clientes quanto no dia a dia profissional, cobrindo faltas, emprestando materiais, compartilhando transporte e até mesmo emprestando dinheiro umas às outras em caso de necessidade.
Uma das coisas mais interessantes que vi ocorrer num grupo de zap de manicures foi uma vaquinha organizada pelo app pra pagar o presente a uma delas que havia dado à luz. A regra do grupo era: ela fez, ela recebe. Quando uma manicure indicava a outra pra uma cliente, a que realizava o serviço recebia o valor integral, muito diferente dos apps de beleza que retiram de 10% até 50% do pagamento de quem efetivamente executa o serviço.
No caso dos salões de beleza que emprestam o nome e o salão às manicures e cobram uma taxa pelo serviço de "indicar" profissionais para as clientes até se justifica, pois o salão oferece algo que manicures independentes não podem oferecer (um local físico, às vezes a marca do salão de beleza).
Já os apps de serviço doméstico, especialmente de limpeza, não oferecem nada às profissionais independentes, e isso é um problema. Ao contrário, ajudam na precarização, porque a economia do compartilhamento, em alguns casos, tem gerado muito valor para os clientes finais, muito valor para as empresas, mas pouquíssimo para os colaboradores.
Outro exemplo são os apps de comida, que oferecem comida a valores muito baixos, derrubando tanto o valor cobrado pelos restaurantes (que acabam diminuindo a qualidade da comida pra aguentar o tranco, como relatado aqui) e também o valor retido pelos entregadores, que, se não aceitam a remuneração, podem ser facilmente trocados por alguém que aceita uma miséria por entrega.
Assunto discutido por pesquisadores como Jeremias Prassl, que cunhou o termo "Human as a Service" ("O Ser Humano como Serviço") para retratar cenários como os da Amazon Mechanical Turk, pioneira no setor da empregabilidade sem emprego. Especial atenção merece o estudo "Platform Inequality: Gender in the Gig-Economy" ("Desigualdade em plataformas: Gênero na economia do compartilhamento" – que você encontra aqui) de um conjunto de mulheres cientistas que sugere que a economia do compartilhamento está criando uma terceira onda de discriminação de gênero — a "Discriminação 3.0". Por ser um estudo empírico, trata-se de uma ótima oportunidade de gestores de políticas públicas e reguladores se debruçarem sobre casos que, do ponto de vista da equidade, não deram certo na economia do compartilhamento. E não são poucos.
Só para enumerar alguns dos exemplos citados no artigo, a literatura acadêmica já demonstrou que pessoas de diferentes etnias e minorias (negros ou árabes, por exemplo) estão sendo discriminadas no Airbnb. Taxas de satisfação de clientes, um parâmetro importante em um sistema que determina a qualidade do seu trabalho pela forma como os outros te percebem (bem retratado por um episódio de "Black Mirror"), favorece homens em detrimento de mulheres. Além disso, elas também têm sido menos remuneradas por itens vendidos no eBay (o Mercado Livre dos gringos), se comparado ao valor do mesmo artigo oferecido por homens. Aliás, se formos atravessar a fronteira de gênero para nos aprofundarmos sobre as questões raciais, precisaremos de uma coluna inteira para isso (como fez, de forma brilhante, Nancy Leong lá em 2014 — sim, você leu certo).
No Brasil, essa herança da escravidão precariza o trabalho considerado descartável. Pedreiros, por exemplo, historicamente precarizados, trabalham em condições indignas em obras desde que o Brasil é Brasil, organizados por empresas que abusam da vulnerabilidade das pessoas que tem quase nada, assim como peões são explorados em fazendas, ou domésticas e cuidadoras, babás e toda sorte de trabalhadoras domésticas. Os apps que reorganizam esse trabalho também se aproveitam dessa vulnerabilidade — ou você está vendo aplicativos baixarem o preço de salário de gente que trabalha no mercado financeiro?
Globalmente, segundo a Organização Internacional do Trabalho, o Brasil só ganha da África em número de trabalhadoras domésticas. No mundo, uma a cada 25 mulheres é trabalhadora doméstica. É muito machismo nesse mundo, gente.
O importante é que a mulherada não se cala. Influenciadoras se revoltaram essa semana quando um app anunciou uma limpeza por R$ 20. Andreza Delgado, uma das criadoras do Perifacon, ressaltou em seu twitter o tamanho do buraco:
Também vale ver o TED de Preta-Rara, historiadora, autora do livro "Eu, empregada doméstica" e rapper consagrada, que mostra o que deveria ser óbvio para todos: o trabalho doméstico é duro, deveria ser muito mais bem remunerado — como de fato é, nos EUA e na Europa. Pergunte a qualquer um quanto custa um dia de limpeza nos Estados Unidos e você vai ficar admirado de saber que em muitos lugares se cobra, por hora, de 100 a 400 dólares. Enquanto isso no Brasil, uma startup tenta vender uma hora por 20 — preço em reais, diga-se. Tsc.
Os valores praticados por empresas de aplicativo não têm um mínimo regulado, como era o caso do salário mínimo. Se uma empresa dessas quiser cobrar 5 reais por hora na limpeza, e alguém desesperado aceitar, não existe uma regra contra isso, e muita gente acha que deveria existir uma regra para conter essa ambição startupeira.
O salário mínimo, transposto para a realidade da economia compartilhada, poderia também ser advindo de uma análise técnica. Com dados em mãos, reguladores poderiam utilizar automação para estabelecer um salário mínimo digno, independentemente do que os apps ditam. Imagine que essa ferramenta poderia mapear em tempo real, por exemplo, o valor diário necessário para uma pessoa comprar uma cesta básica — e então dar um "ping" nos apps todos para que eles se ajustem automaticamente à um valor digno.
Muita gente acha que precisamos de um novo contrato social — ou seja, novas regras pra que as trabalhadoras não continuem se ferrando historicamente. Eu concordo. Não é porque é digital que tá liberado liberar. Como se diz no Brasil, no dos outros é refresco. O problema também está no fato de que esses apps são feitos por gente que nunca teve que lavar a própria louça. Apesar de historicamente trabalharem de modo independente, veja os exemplos de manicures, cabeleireiras, vendedoras de marmitex, lavadeiras e outras profissões, as mulheres mais pobres com menos escolaridade são as que menos recebem apoio e investimento pra abrir o próprio negócio, quem dirá uma "startup de app". Infelizmente o cenário não é promissor em um país que não investe em educação e não apóia a política de cotas em universidades (que deveria se expandir para cursos técnicos, na minha humilde opinião).
Claro, entre os nossos reguladores vai levar um tempinho pra cair a ficha. Com o nível técnico de quem cuida da coisa no Brasil não podemos esperar muito por agora, então o ideal é que as entidades de classe se atualizassem pra correr atrás do prejuízo. As regras antigas do trabalho não vão voltar, mas isso não significa um futuro sem cooperativas ou qualquer outro tipo de aglomeração trabalhista que garanta uma vida digna ao trabalhador de app. Trabalhadoras mulheres, quero dizer. Em sua maioria negras, no caso.
Isso se estende a outras categorias de trabalho precarizado, que agora têm na tecnologia uma oportunidade de driblar esses apps e pensarem em novos mecanismos de garantias de um ganho mínimo — até para que cada vez mais a gente abandone essa cultura brasileira de ter alguém pra lavar aquela louça acumulada de cinco dias, ou a do churras do final da semana.
E você, que tal lavar a própria louça?
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