Momo: as origens da lenda, os sustos de hoje e o loop estranho da história
Semestre passado, quando pesquisava o fenômeno da desinformação na Universidade de Harvard, acordei um belo dia obcecada com a Momo. Na época, meados de março de 2019, o Ministério Público do Estado da Bahia, por meio de seu Núcleo de Combate a Crimes Cibernéticos (Nucciber), havia notificado Google e WhatsApp para que as empresas "removessem" todas as imagens relativas ao hoax que circulassem em suas redes. Essa notícia (minha fascinação por teorias da conspiração) me fez gastar algum tempo pesquisando a Momo e sua história.
Lendas e mitos carregam fantasmas ou fantasias coletivas, histórias que vão se arrastando com o tempo e se espalhando em adaptações, de acordo com ciclos que podem aproximar o absurdo da verdade. Algumas histórias da Internet são baseadas em medos irracionais e desconhecimento, teorias da conspiração que parecem oferecer a grupos um inimigo em comum quando tudo parece perdido.
Na web das mídias sociais, esse mitos são reciclados com elementos do passado e do presente, influenciados pela disponibilidade de múltiplos "canais" de informação que vem de várias fontes – especialmente os usuários, individualmente. Assim, vez ou outra elementos fundamentais das histórias se misturam a novos fragmentosm formando narrativas míticas compartilhadas unindo comunidades, mas sem abandonar os elementos que trazem do passado.
A Momo é um exemplo maravilhoso desse fenômeno. A imagem da criatura é na verdade a foto da escultura de Keisuke Aisawa, que a construiu para uma feira de terror que acontece no Japão, a chamada Ghost Gallery III. É interessante notar que a Momo é uma Harpia – criatura muito presente na mitologia: um pássaro com rosto de mulher e seios, que geralmente faz algum mal ou está associada a torturas e sequestro de crianças.
Uma das aparições mais famosas das Harpias é durante a história de Apolônio de Rodes, de titulo "Jasão e os Argonautas". Nessa história, a tatatataravó da Momo aparece como o pássaro que não deixa o rei Phineus comer, um castigo enviado pelo próprio Zeus, que era o deus da época. Outra aparição interessante da Harpia é no Canto XIII do livro do Inferno escrito por Dante Alighieri, onde as Momos medievais torturam os pecadores no eterno fogo da mitologia cristã. O poeta inglês William Blake pintou-as como as criaturas tomando conta dos suicidas no Inferno (como se percebe em uma das imagens abaixo).
A Momo também é o jeito que Aisawa representou a Yokai Ubume, uma criatura fantasmagórica japonesa que representa a alma de uma mulher que morreu durante o parto. Também presente nos mitos chineses, a criatura está em histórias onde ela sequestra bebês ou vigia as crianças à noite. Essa apavorante criatura poderia inclusive aparecer do nada oferecendo um bebê às pessoas, que ao aceitarem ficariam presas eternamente ao "peso" dessa criança fantasma.
Os russos costumavam representar mulheres com corpo de pássaros como Sirins, criaturas que cantariam para os anjos, mas que seriam perigosas para humanos.
O Brasil, é claro, rico em seu folclore, não poderia deixar de ter também uma mulher-pássaro aterrorizante. A nossa é a Amazônica Matinta Perera, uma velha que à noite toma um corpo de pássaro para aterrorizar as casas, e só vai embora se lhe for prometido um traguinho pro dia seguinte.
A parte interessante da Momo é a linha do tempo por trás da construção do hoax. Em 2014 o estúdio Ghibli, aclamado por suas animações, lançou uma versão da história de Ronja, a filha do ladrão (Ronja, the Robber's Daughter), baseada em uma novela lançada em 1981 pela sueca Astrid Lindgren (Ronja rövardotter). No filme do estúdio Ghibli, Momo aparece comportada, mas aterrorizando a criançada, tentando comer justamente a personagem principal do filme desde que ela nasceu.
Em 2016, após a exposição da estátua feita pelo artista, o hoax começou a circular, primeiro em japonês, depois pelo mundo todo, via WhatsApp. A brincadeira evoluiu. Em 2018 o YouTube explodiu com vídeos de denúncias nunca comprovadas de crianças que teriam cometido suicídio por causa da criatura, levando pais à loucura e enchendo de cliques quem publicava sobre ela. Aparentemente, Momo agora vai estrelar um filme de terror, onde ela vai – muito provavelmente – matar, estrangular, torturar… criancinhas.
É muito curioso o caminho das histórias na Internet. Muitas são versões modernas de antigos mitos, habitando o inconsciente coletivo desde que a "humanidade é gente". A web é essa sopa de teorias da conspiração, mentiras, mitos e verdade, onde vamos depositando medos e inseguranças que trazemos desde os tempos mais antigos. Os medos irracionais modernos podem não ser tão arrojados assim, especialmente se tem suas raízes em dogmas históricos. O que é alimentado culturalmente pode ir e vir em ciclos, dependendo do momento histórico. Basta que os sentimentos se "encaixem" na peça do inconsciente coletivo à disposição para validar uma narrativa.
Terminei de ler no começo de 2019 um livro de Douglas Hofstadter chamado "I am a Strange Loop" (Eu sou um loop estranho"), onde ele argumenta que para entendermos a consciência teríamos que entender um "feedback abstrato" que habita nosso cérebro.
Segundo ele, nossa sopa de neurônios é uma rede de abstrações, os símbolos, e inclusive nós mesmos seríamos uma "criação" dentro dessa sopa. Eu precisaria de mais umas dez páginas para descrever o livro todo, mas um trecho me chamou a atenção, pois há um paralelo a fazer quando falamos do problema da desinformação na Internet.
No livro ele explica: "Você toma decisões, executa ações, afeta o mundo, recebe feedback, o incorpora a si mesmo; o 'você' atualizado toma mais decisões e assim por diante, repetidamente". Ao terminar o livro, me perguntei se esses ciclos de atualização, regulados por atividades dogmáticas, rotinas e mitos não teriam um papel na construção coletiva, sendo reconstruídos cada vez que repetimos o comportamento de milênios atrás, como por exemplo revisitando o medo de que um pássaro-mulher-monstro faça mal à crianças.
Podemos ter certeza de que as mulheres-pássaro vão voltar a aterrorizar as crianças daqui a séculos? Qual simbologia essa mulher que provoca tortura está sendo ativada quando nós, humanos, construímos coletivamente um novo hoax atrativo? E qual o papel que a Internet tem nisso tudo?
Essas são perguntas que eu não consigo responder em um post de blog, e certamente não responderia nem com uma vida de pesquisa.
O importante é saber que – por enquanto – a Momo é inocente.
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