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Yasodara Córdova

A internet das redes sociais é liberal?

Yasodara Córdova

14/08/2019 17h58

Competição e livre mercado são a base do capitalismo. As empresas de internet são construídas tendo como pilar a competição pela oferta de melhores serviços e atendimento ao usuário para fidelizar sempre mais consumidores, pois o negócio só anda se tiver uso constante das plataformas.

Se você acreditou nesse primeiro parágrafo, é porque você parou na orelha dos livros sobre modelos de negócios online. A fragmentação da internet faz a fidelização ser muito difícil e as empresas de tecnologia recorrem a todo jogo disponível para manter sua base de clientes, mesmo que isso signifique quebrar algumas regras básicas do capitalismo. Inclusive a regra de ouro do livre mercado.

Estratégias agressivas para monopolizar o usuário são imprescindíveis no modelo de negócios atual, porque funcionam no atacado: as empresas precisam de muitos dados, porque têm pouco retorno em cada transação (o clique, a exposição ao anúncio etc). Traduzindo: como oferecem serviços grátis, precisam maximizar o lucro que só é possível aumentando o número de usuários interagindo o tempo todo – para que eles cliquem em anúncios.

Indiretamente, isso acaba respingando em outro assunto que pode parecer distante da economia da internet, mas não é: o mercado de bizarrices e fake news prospera. Chamo de mercado de bizarrices esse incentivado pela troca de cliques e likes por conteúdo apelativo e fantástico. Fantástico no sentido de fantasia mesmo – lorota, invenção, teoria da conspiração, qualquer narrativa que desperte sentimentos primordiais.

É um mercado ainda não mapeado, que já mostra seus dentes em áreas importantes para a convivência social: política e saúde. Nesses nichos específicos o mercado da bizarrice tem ganhado espaço com a ajuda de algoritmos, feitos para maximizar o lucro e fidelizar o usuário pelo máximo de tempo possível.

Outras falcatruas, como por exemplo desrespeitar o Marco Civil da Internet e fazer acordos com operadoras para priorizar aplicativos nas lojas ficam no chinelo em termos de desvio do modelo de competição livre (mas são igualmente nocivos).

E porque o uso de algoritmos de aprendizado profundo sem supervisão cria essas distorções no mercado? Digamos que a empresa A quer lançar uma coleção de vídeos sobre coelhos e seus hábitos, visando anunciar produtos para criadores de coelhos. Agora, suponhamos que a empresa B lance também uma coleção de vídeos para atrair anúncios em suas páginas, mas apelando para bizarrices. Enquanto os vídeos da empresa A mostram a vida dos coelhos, os vídeos da empresa B apelam para mostrar fatos incríveis – e falsos – para atrair usuários.

O usuário, que entrou pra ver vídeos de coelhos, assiste ao vídeo da empresa A mas logo depois não resiste e clica na recomendação, que indica o vídeo com o título: "COELHOS DEFECAM OURO E FALAM. ENTREVISTA COM ESPECIALISTAS". Com esse clique, o usuário treina o algoritmo, que aprende que ele gosta mesmo de bizarrices, além de coelhos. O próximo vídeo sugerido tem o título: "Coelhos assassinos. Você não vai acreditar no que vai ver". Logo depois: "Coelho destrói cavalo e diz: 'comigo não tem moleza, talkei"'.

O usuário, desavisado, acaba se interessando cada vez mais por histórias alternativas sobre coelhos. Não se interessa mais por coelhos normais, mas acaba se viciando em brigas de coelhos com cavalos. Os autores dos vídeos ganham muito dinheiro (com anunciantes!) e ficam ricos, decidindo lançar o coelho vermelho – o personagem dos vídeos – como candidato pelo primeiro partido político que passar. O coelho bizarro ganha. O resto é história.

Na saúde não é diferente: milhões de pessoas buscam no YouTube, por exemplo, informações sobre como se curar de doenças de um modo mais fácil do que ir ao médico, como mostra um estudo publicado em reportagem do NYT do qual eu fiz parte. Com um algoritmo treinado para mostrar às pessoas o que elas mais gostariam de ver, a competição fica injusta e o consumidor fica com menos escolhas.

Comparando com prateleiras de mercado, é como se o gerente fosse aos poucos substituindo a variedade nos sabores de geleias por apenas um sabor, aquele com mais chances de ser comprado, baseando-se nas compras da maioria. Se a maioria compra geleia de morango, colocamos mais geleia de morango até acabar a variedade nos sabores. Assim os algoritmos acabam com a variedade nas visões e conteúdos de vídeos de plataformas como o YouTube – derrubando a regra de ouro da competição no livre mercado.

Mais ainda, as plataformas de distribuição de fake news acabam por ser bancadas pelo dinheiro gerado por uma distorção na distribuição (provocada pelos algoritmos) impedindo a competição justa. No nosso caso dos coelhos, apenas uma das visões fica exposta, e os usuários fidelizados se tornam comportamentalmente homogeneizados, tirando espaço da pluralidade.

Esse é um problema difícil de resolver. Uma solução seria impor, via regulação contra monopólios, a exibição igual para certos tipos de conteúdos – educacionais e de saúde, por exemplo. Considerando que youtubers são produtores, seria o normal dar a eles a chance da competição justa, obrigando as empresas a não priorizar determinados tipos de conteúdo. A exibição na TV já tem regras e as emissoras têm obrigações que deveriam ser estendidas também para o espaço das plataformas da internet.

As interfaces de plataformas deveriam se reinventar para oferecer aos usuários visões plurais ou prateleiras recheadas de variedade, para que as pessoas possam efetivamente ter seu direito de escolha respeitado.

Uma solução paralela seria inserir competidores artificialmente por meio de subsídios para bancar a publicação de conteúdo científico dentro dessas plataformas para programas de saúde e educação pública.

Claro que não é só o viés econômico que impulsiona as notícias falsas e vídeos bizarros. Outros incentivos estão no cenário. Mas com relação à competição, seria melhor que a internet fosse realmente livre, oferecendo aos usuários a maior variedade de conteúdos possível, sem priorizar certas ideologias. Ou começamos a pensar nisso ou podemos começar a procurar por "cientista mostra que a Terra não é plana enquanto toma banho na banheira de Nutella"…

Sobre a autora

Yasodara Córdova é desenhista industrial formada pela UnB (Universidade de Brasília). Está hoje em Harvard, na Digital Kennedy School, onde pesquisa governo, internet, inovacão e sociedade. Yaso é uma das mais antigas fundadoras de um hackerspace no Brasil (Calango Hackerspace) e desenvolvedora de software autodidata. Ela também já foi web especialist do W3C e consultora técnica da ONU (Organização das Nações Unidas), entre outras atividades.

Sobre o blog

Este blog é sobre internet, políticas públicas e governo.