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Yasodara Córdova

Tagueando as cidades inteligentes do Brasil

Yasodara Córdova

04/04/2019 04h00

Os projetos de cidades inteligentes no Brasil estão por aí há pelo menos uma década. As chamadas "smart cities", ou cidades automatizadas, cresceram em importância nos últimos anos e também viraram hype em conferências sobre governo digital. Políticos e gestores embarcaram nessa onda sem pestanejar — afinal, cidades inteligentes significam investimento e ações que tendem a aparecer para os cidadãos em menos de quatro anos, além do fato de que o monitoramento dos dados pode ser um apoio interessante para a melhoria das políticas públicas voltadas para cidades.

A IDC, uma consultoria que atua em tecnologia e telecomunicações, previu que cidades vão gastar mais de US$ 158 milhões até 2022 em "inteligência". Esse valor é referente ao mundo todo. O objetivo é tornar a convivência urbana mais sustentável e agradável para os cidadãos. E como fica o Brasil nessa? Bom, por aqui já se gasta bastante com o desenvolvimento de cidades inteligentes. O problema é outro. Tomando por base Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro, cidades analisadas em estudo do CTS FGV-Rio do qual faço parte, podemos afirmar que esse desenvolvimento é desordenado e desigual. É difícil saber exatamente quanto se gastou e se esse gasto foi eficiente. O motivo? Não há dados estruturados sobre o assunto. Perguntas, como a feita por Pedro Rivera durante um seminário em 2016, questionando de que forma a tecnologia, leia-se os dados, conseguem ser utilizados para a redução da desigualdade, são quase impossíveis de serem respondidas. E isso se deve à infraestrutura atual, ou falta dela, que temos para esses dados.

Também não conseguimos responder a outros questionamentos, como qual o equipamento mais comprado para projetos de cidades inteligentes no Brasil ou quais serviços foram mais contratados sob a égide de projetos de modernização digital de cidades, entre outros pontos. Não é possível fazer essas contas porque os sites de dados abertos ou transparência não prestam contas necessariamente por projeto ou assunto, e acordos, parcerias, contratações e contratos em projetos de cidades inteligentes podem pertencer a um largo conjunto de atividades. Do mesmo modo, fica difícil conceber qual seria o modelo de avaliação das políticas públicas para cidades inteligentes. Sem dados, não existe transparência, e a avaliação interna dos programas também fica comprometida.

Veja, por exemplo, o site da transparência da Prefeitura de Curitiba. Os termos utilizados para descrever gastos e compras são genéricos demais, e quando se busca por palavras-chave conectadas ao conceito de "smart cities", o retorno é zero. Não significa que a cidade não investiu em projetos como esse, nem que não publica seus dados de acordo com a Lei de Acesso à Informação. Significa que não existe um vocabulário comum para que legisladores, funcionários públicos e empresas consigam trabalhar juntos por cidades melhores. Isso porque se cada um tem acesso a uma parte das informações e a sociedade segue sem acesso, seria impossível a sociedade participar desse debate. Vale entender que cidades são como plataformas, que melhoram apenas com a participação contínua dos cidadãos na gestão. Do contrário, o destino de cidades inteligentes pode ser mesmo a desigualdade.

Por falar em desigualdade, inspirada por um exercício feito em 2012 por Rafael Pereira, urbanista do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), analisei as menções no Google Trends sobre expressões como "smart cities" e "cidades inteligentes". A frequência de busca desses termos na ferramenta pode ser apenas uma fração nas variáveis que determinam se a participação dos brasileiros é homogênea nas discussões sobre o tema, mas com certeza o fato da concentração dos resultados ocorrer majoritariamente em cidades do Centro-Sul mostra que é preciso ampliar a conversa no restante do país.

Google trends com a palavra

Google Trends com a palavra "smart cities", demonstrando a concentração do debate

 

Tem solução?

Uma das barreiras para uma mudança mais rápida e ampla é a falta de diálogo entre as pessoas que vivem nas cidades de hoje e os grupos que constroem as tecnologias de amanhã. Outra é a já apontada falta de dados sobre as ações governamentais implementadas, o que permitira à sociedade civil reavaliar os projetos e construir cidades inteligentes que façam sentido para o cidadão. Para isso, é necessário estabelecer vocabulários comuns a todos os atores envolvidos no desenvolvimento de políticas públicas para cidades inteligentes. O uso desses conjuntos de palavras irá viabilizar que dados coletados por aplicações e serviços digitais sejam abertos e disponíveis para análise de todos. Podemos chamar esse conjunto de palavras de metadados estruturados, que devem acompanhar todo o ciclo de implementação de tecnologias para "smart cities". No fim das contas, seria como etiquetar certas ações para que se possa acompanhar todo o ciclo de desenvolvimento de serviços em cidades inteligentes.

O desenho abaixo exemplifica um tipo de ciclo de dados em uma aplicação para cidades inteligentes. Os metadados são como etiquetas que viajam desde o projeto publicado no Diário Oficial da União, passando por editais de compra de determinados equipamentos até APIs ou sites de dados abertos de governo. Tais dados seriam utilizados para a análise dos resultados de políticas públicas voltadas para cidades inteligentes e para o acompanhamento e melhoria de projetos. 

O gráfico mostra como os metadados seguem

O gráfico mostra como os metadados seguem "tagueando" os pacotes de dados que são coletados via dispositivos de Internet das Coisas. Isso ocorre durante todo o ciclo de dados, o que possibilita a verificação da eficiência dos serviços utilizados.

Hoje em dia, como não existe esse vocabulário e nem as ações de cidades inteligentes incluem componentes de accountability, é muito provável que empresas e governo negociem, à revelia dos cidadãos, o que é "melhor" para as cidades. A urgência de utilizar tecnologia para melhorar a vida das pessoas é enorme — especialmente porque é uma chance de modificar o estado de desigualdade em que nos encontramos. Para isso, é importante que a tecnologia seja sempre implementada como meio de participação, ajudando o cidadão a ter pleno direito à cidade e aos recursos comuns garantidos na arquitetura dos sistemas, mesmo que isso custe a reformulação estratégica de planejamentos milionários.

Sobre a autora

Yasodara Córdova é desenhista industrial formada pela UnB (Universidade de Brasília). Está hoje em Harvard, na Digital Kennedy School, onde pesquisa governo, internet, inovacão e sociedade. Yaso é uma das mais antigas fundadoras de um hackerspace no Brasil (Calango Hackerspace) e desenvolvedora de software autodidata. Ela também já foi web especialist do W3C e consultora técnica da ONU (Organização das Nações Unidas), entre outras atividades.

Sobre o blog

Este blog é sobre internet, políticas públicas e governo.