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Yasodara Córdova

Um país sem dados é um país pobre (para sempre)

Yasodara Córdova

30/04/2020 04h00

Hoje em dia é fácil ver gente falando de dados até nos corredores de ônibus. É uma palavra muito citada, não só porque remete a vários contextos, como "franquia de dados", mas porque a internet trouxe os dados para o contexto do dia a dia, e nos últimos 10 anos adotamos a palavra com força — algo que se confirma pela análise do Google Trends.

Dados do Google Trends para a palavra

Dados do Google Trends para a palavra "Dados" nos últimos 5 anos, no Brasil

Dados estão especialmente conectados com o desenvolvimento de um país. A coleta estruturada e científica de dados sobre vários aspectos representa uma questão de desenvolvimento econômico e social. Um país que não tem dados confiáveis é um país sem direção. É como se uma pessoa não soubesse o básico sobre si mesma: quantos anos tem, quanto mede, quantos quilos pesa ou sequer sua data de nascimento. Pessoas sem noção de seus dados geralmente estão em situação de abandono ou desamparo, ou ainda não cresceram o suficiente e precisam da tutela dos pais, que então guardam os dados importantes sobre suas crianças.

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Estudos mostram que quanto mais dados confiáveis e bem estruturados um país coleta, mais desenvolvido ele é, mais chances de competir mundialmente na economia digital e de se ter um governo democrático funcional. Recentemente o Brasil, e alguns outros países, vivem na dúvida sobre os casos de Covid-19 que foram a óbito ou não — certa evidência são as fotos aéreas desoladoras de covas de cemitérios abertas aos montes no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Isso porque ninguém consegue confiar nos dados oficiais. Não há testes suficientes e não há garantia de que chegarão, apesar da fala mirabolante de ministros. Segundo dados apurados em artigo da Bloomberg, o Brasil e o México são os países que menos examinam nas Américas, contrariando o que as autoridades andam prometendo no Brasil.

O gráfico abaixo relaciona quantidade de testes por milhão de pessoas, em alguns países. 

Grafico da Bloomber mostra que o Brasil quase não testa, e portanto figura na rabeira dos países em termos de combate à pandemia

Além de não haver testes, dados oficiais sofrem correções ao longo do dia. Não pode ser sério que um ministério anuncie algo em torno de 300 mortes pra depois cortar os números pela metade no mesmo dia. Esse tipo de erro é grosseiro, e inspira desconfiança para todos os lados. Claro que não é só o governo federal que não tem dados. A diretora executiva da Open Knowledge Foundation (uma instituição que cuida de transparência e dados abertos), Fernanda Campagnucci, escreveu textos pedindo mais transparência em São Paulo, estado em situação crítica, mas o Twitter inteiro reclama da subnotificação e da incapacidade dos governos de publicar dados reais. 

Essa discussão na timeline do médico e pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Direito Sanitário da USP, Daniel Araújo, mostra como a situação é precária. 

Já tem gente dizendo no Twitter que a quantidade de mortes é 168% vezes maior do que os dados divulgados oficialmente. Imagina uma pessoa que erra em 168%, por exemplo, a quantidade de dinheiro que tem no banco. Pois é. O Brasil é esta pessoa agora, mas estamos falando de mortes — ou seja: não tem cheque especial.


Claro que isso não veio com a pandemia. Antes disso o país já estava desmontando seus institutos que coletam dados, seja pela falta de investimento ou pela demissão de quadros técnicos, destruindo uma infraestrutura de coleta de dados que o Brasil vinha investindo faz mais de dez anos – ou alguém esqueceu o episódio da demissão de um dos melhores quadros técnicos do Brasil, o Dr. Ricardo Galvão, que chefiava o INPE? Relembrar é viver. 

Esses vacilos de não medir o que temos de maneira confiável acaba deixando o Brasil na rabeira da competição internacional. Não é só o governo que tem de medir os recursos de um país. Ainda assim, a tarefa é criar condições para que empresas privadas possam medir os recursos e transformar isso em inteligência. Ou seja: o setor privado acaba ficando pra trás na competitividade também. Países que podem competir internacionalmente sabem muito bem quanto podem negociar, mas acima de tudo sabem que coletar e armazenar informações sobre isso é gerar ativo. São os tais "data markets", ou mercados de dados. No Brasil, esses dados estão sendo medidos por empresas estrangeiras, que têm tecnologia e inteligência para fazer funcionar. 

Só pra ilustrar, deixo o exemplo da Kobold Metals, startup que acaba de ganhar muito dinheiro da Microsoft para encontrar repositórios de metais importantes para a indústria de carros elétricos pelo mundo. A empresa tira fotos das superfícies da Terra, analisa com inteligência artificial, e, porque tem os dados, consegue gerar inteligência sobre os recursos minerais de cada país. Outro exemplo que adoro citar é a MapBox, empresa que utiliza imagens dos satélites do governo americano (que são fornecidas de graça) para gerar uma série de produtos de inteligência. O Brasil, com o tamanho e a necessidade que tem, poderia ter dez vezes a quantidade de startups de dados que temos hoje. 

Outro exemplo é a maneira criativa com que a França descobriu como mapear a evolução da Covid-19 — sem precisar seguir e vigiar todo mundo: coletar dados da presença do vírus no esgoto, acompanhando, com a coleta de dados, o "andamento" do vírus pelos bairros. Pra falar também de setor privado, vou citar a BioBot Analytics, uma startup que nasceu no MIT (Massachusetts Institute of Technology), cuja estratégia é analisar o esgoto para prestar serviços a governos nos Estados Unidos, ajudando a mapear crises de saúde (como a epidemia de opioides, por exemplo) pela coleta e análise de dados de esgotos das vizinhanças. Exemplos não faltam. 

Só o potencial de produtos de dados que poderiam ser gerados com dados de manutenção de florestas já é um filão infinito. Medir, monitorar e construir produtos com a conservação das florestas brasileiras poderia gerar muito dinheiro para o país, tanto em empregos como em impostos. Infelizmente, o próprio INPE, que fornece dados para uma série de iniciativas que têm potencial no Brasil, vem sendo paulatinamente desmontado e colocado a serviço de ideologias obscuras, que não apostam na ciência e na tecnologia como método (mas sim no autoritarismo e nas milícias). 

Falando em milícias, outro filão para a coleta de dados é a segurança. Uma área onde a inteligência tem sido aplicada de modo tosco — vide a quantidade de câmeras que são compradas para vigiar pessoas, em lugar de se investir em estratégia e formação de quadros inteligentes nas polícias e no Exército. Quando falo em aplicar inteligência, falo também em inovação. Uma das inovações do setor consiste nas armas inteligentes, que identificam dados biométricos dos usuários para atirar — ou seja, não atiram quando não for o policial designado manuseando e tem munição rastreável. O Brasil poderia criar empregos investindo nesse tipo de tecnologia e permitir, ao mesmo tempo, a queda brusca do mercado paralelo de armas que vão do exército e da polícia para as milícias, por exemplo. O uso de armas inteligentes permitiria o mapeamento da distribuição das armas no Brasil e iria, basicamente, secar as oportunidades pra bandidagem adquirir armamento do exército ou da polícia. Mais um setor onde o investimento em uma infraestrutura de dados seria benéfico para a economia. 

A crise da Covid-19 só mostra o quanto é importante um governo preparado, informado e que aposta na ciência, além de uma infraestrutura pública de dados confiável, bem regulada e estruturada. Não adianta trocar ministro se não começar a acreditar na ciência e na pesquisa, na tecnologia, como saída para um futuro melhor para todos. Mais crises virão — em especial a crise climática. De novo, a natureza vai colocar de joelhos aqueles que não acreditam em dados, ou desprezam uma infraestrutura pública de informações úteis, e não apostam na  economia digital. Sem contar direitinho nossos recursos, não conseguiremos nem saber quais hospitais precisam ou não de UTIs, ou sequer oferecer o número certo de equipamentos de proteção aos nossos enfermeiros, bombeiros, policiais…. E por aí vai. 

Infelizmente, parece que o Brasil vai pagar para ver (de novo).

Sobre a autora

Yasodara Córdova é desenhista industrial formada pela UnB (Universidade de Brasília). Está hoje em Harvard, na Digital Kennedy School, onde pesquisa governo, internet, inovacão e sociedade. Yaso é uma das mais antigas fundadoras de um hackerspace no Brasil (Calango Hackerspace) e desenvolvedora de software autodidata. Ela também já foi web especialist do W3C e consultora técnica da ONU (Organização das Nações Unidas), entre outras atividades.

Sobre o blog

Este blog é sobre internet, políticas públicas e governo.