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Yasodara Córdova

Não existe censura na internet, ministro

Yasodara Córdova

17/04/2019 04h00

Acordei terça de manhã com uma mensagem no meu zap contendo todas as páginas da revista "Crusoé" que foi censurada pelo ministro Alexandre Moraes recentemente. O título da matéria, "O amigo do de meu pai", é um pedaço de uma delação de Marcelo Odebrecht, que estaria contida em um documento esclarecendo que um dos protagonistas de uma suspeita troca de e-mails seria Dias Toffoli, que, à época, era advogado-geral da União.

Hoje, Toffoli preside o Supremo, e pediu para que Alexandre Moraes, ministro indicado por Temer, conduzisse investigações sobre campanhas de desinformação que estariam ferindo "a honra dos ministros" ou "vazamentos de informações sobre integrantes da Corte". Pela primeira vez a Suprema Corte se preocupa com o tema da moda: as "fake news". A má notícia é que eles entenderam tudo errado sobre a internet e o que significa estar em uma rede conectada. Também entenderam errado o que pesquisadores têm falado insistentemente sobre as campanhas de desinformação: as notícias falsas são também o resultado de uma falta de confiança generalizada em instituições antigas, que parecem privilegiar grupos de pessoas em detrimento do bem comum.

O STF passa pela maior prova de fogo de sua existência. Em tempos de internet, a falta de transparência significa um flanco aberto para campanhas de fake news dos mais variados tipos. Essas campanhas não vão se resolver com censura e bloqueios da internet, nem com regulações tipificando novos crimes. Ao contrário: para campanhas de desinformação o antídoto é recuperar a confiança por meio de transparência e participação, além de informação de qualidade circulando. Do contrário, campanhas de desinformação tendem a reforçar crenças e suposições que já existem na sociedade.

Foi exatamente isso que a censura ao site da "Crusoé" fez: atribuiu veracidade ao documento que contém a delação. O documento, por sua vez, teria sumido dos autos, ou nunca existiu. Se nunca existiu, agora ninguém vai acreditar. É uma cobra comendo o próprio rabo — mas já não faz mais diferença: a decisão é a prova de que o STF não quer que as pessoas associem o nome de Dias Toffoli à corrupção da Lava Jato. No exato momento que há um discreto clamor por uma operação "lava toga", a decisão de censura a um documento, com objetivo de mantê-lo longe dos olhos do público, revela a desconexão da instituição com as redes, algo que pode deslegitimar o poder conferido não só ao STF, mas ao judiciário brasileiro como instituição.

Veja bem: o judiciário brasileiro já é conhecido e criticado, entre os entusiastas do combate à corrupção pela transparência e abertura de dados, como a caixa-preta mais bem fechada do Brasil. A cada abertura de dados sobre o Supremo, decisões que privilegiam poucas pessoas seguem à abertura, quase como uma comprovação de que o judiciário teria algo a esconder. Os debates, que quase sempre procuram esconder privilégios do judiciário mais caro do mundo, seguem dilapidando a reputação de um dos pilares da democracia. A má impressão não é isolada na comunidade anti-corrupcão: as buscas do Google, por exemplo, que refletem o volume de buscas por termos em geral, podem ser um bom termômetro sobre como pensa uma sociedade. A nossa não está com uma boa imagem do judiciário.  Basta uma consulta no Google pra comprovar:

Resultado da busca por

Resultado da busca por "Judiciário mais" no Google

Além de não impedir a distribuição da reportagem, a decisão do Supremo criou uma onda de distribuição da notícia que acabou por reforçar a conexão que a Corte desejava evitar. Reforça as suspeitas do povo sobre a instituição, já vista como corrupta por vários brasileiros. Pra piorar, o ministro Alexandre Moraes mandou bloquear contas dos investigados nas principais redes sociais: Facebook, WhatsApp, Twitter e Instagram, configurando o ato mais absurdo já visto no Brasil depois da instituição do Marco Civil da Internet do Brasil, que em seu Art. 7.º garante que a privacidade e liberdade de expressão são direitos de cidadania, condicionados ao acesso à 'internet'. Isso não pode acabar bem. Um ministro não pode pedir o bloqueio de meios de comunicação e expressão de pessoas na internet desse jeito. Essa série de decisões se conecta com uma tendência de governos autoritários do mundo todo de suprimir vozes de dissensos.

Na semana passada, o Equador retirou as proteções de sua Embaixada resultando na prisão do Australiano Julian Assange, fundador do Wikileaks. Ola Bini, desenvolvedor e pesquisador em privacidade, foi preso no Equador de modo arbitrário e sem provas, acusado de "ler muito" e "portar muitos equipamentos eletrônicos". Acho estranho que o STF, que prometeu ações efetivas durante as eleições contra as "fake news", e não fez nada tangível, agora se renda a uma caça às bruxas, começando pela censura e bloqueio de contas em redes sociais. Não há como controlar o discurso político da internet. O que o STF tem que fazer é provocar a discussão sobre o aumento dos investimentos em educação digital, bibliotecas virtuais, o cumprimento do Marco Civil da Internet no que concerne à neutralidade da rede e a melhoria da regulação sobre as plataformas no Brasil.

A defesa da liberdade de expressão precisa ser equilibrada com a vontade de combater as fake news. Nós já temos o processo legal, temos crimes tipificados — por exemplo, leis que punem racismo e injúria racial, que não estão sendo respeitadas nas redes, coalhadas de crimes. Todo dia vemos ameaças de morte, campanhas de ódio e difamação que atingem pessoas que nem sempre têm condições para se defender (judiciário caro, lembram?). É aí que o STF precisa atuar. Por último, é hora do STF, e do judiciário todo, repensarem seus processos em uma sociedade conectada. Eficiência, real cumprimento dos objetivos do poder que visa equilibrar as forças dentro de uma democracia, e mais conexão com o povo são pontos que não podem mais ser evitados.

As prisões de jornalistas, hackers, ou a censura de comentários e opiniões não é combustível para democracias saudáveis. Ao contrário, sociedades que matam e prendem os membros da imprensa — e é bom dizer que o Brasil já é o segundo país da América Latina que mais mata jornalistas, são sociedades onde o povo sofre e não pode dizer nada sob pena de ser censurado, torturado e morto. O Brasil, que já anda na berlinda, não precisa de um empurrão pro abismo que seria um governo autoritário disfarçado de democracia. A decisão de Raquel Dodge, de suspender todas as ordens de Alexandre, revela um judiciário que não sabe o que fazer com a internet. Um judiciário que recentemente pediu para o WhatsApp censurar imagens da Momo, alegando a proteção da infância, completamente desconectado de qualquer realidade da Internet, onde vídeos com pseudociência rolam soltos ensinando crianças que os ETs estão chegando, ou que vacinas fazem mal à saúde.

Com a 'internet', todo o governo está atrás de paredes de vidro. Jogar uma cortina de fumaça não vai adiantar — nem evitar que o povo queira quebrar as vidraças.

Sobre a autora

Yasodara Córdova é desenhista industrial formada pela UnB (Universidade de Brasília). Está hoje em Harvard, na Digital Kennedy School, onde pesquisa governo, internet, inovacão e sociedade. Yaso é uma das mais antigas fundadoras de um hackerspace no Brasil (Calango Hackerspace) e desenvolvedora de software autodidata. Ela também já foi web especialist do W3C e consultora técnica da ONU (Organização das Nações Unidas), entre outras atividades.

Sobre o blog

Este blog é sobre internet, políticas públicas e governo.